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Cronicas-->Lobo -- 28/10/2023 - 00:16 (flavio gimenez) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

A primeira vez que vi o lobo, ele estava bem no canto onde a cortina se remexe toda, açoitada por vento lá de fora; ele estava de olho em mim, aqueles olhos brilhantes que iluminavam o escuro ou a própria escuridão estava neles, em relâmpagos frios. Eu fiz menção de me levantar, ele se pôs em alerta, a cauda baixa, o rosnado típico da fera que se sente acuada ou está em ambiente hostil. Conheço bem o quanto ele pode triturar as vítimas de sua caça, embora este lobo esteja só, bem no canto da sala. A primeira coisa em que pensei foi a de manter a segurança de minha família, pois minha filha mais nova dormia no quarto dela e minha esposa estava lendo no quarto de casal. Eu olhava o lobo, aquele olhar frio e fixo, como que medindo minha posição e comparando, calculando, de forma talvez demoníaca, onde ia me atacar primeiro. Era dos grandes, devia ter dentes agudos e aguçados. Havia um tinido na cozinha, eu sabia que era a geladeira que dava pequenos solavancos antes de terminar o serviço e, barulhenta, chamou a atenção do animal; foi o que bastou para eu correr para dentro, em direção ao aposento, para inútil defesa, mas bateu o remorso de deixar aquilo solto dentro do apartamento.

Consigo pensar, apesar do pânico, que aquilo pode ser um sonho engendrado por minha filha, que dorme a sono solto e já fez surgir no hall um cervo, bem na época do Natal, para surpresa minha e de minha esposa, leitora ávida de literatura fantástica. Eu mesmo nem imagino o que seja a tal fantástica literatura, ainda mais com um lobo pronto para devorar minha perna ou quiçá meu braço esquerdo, que sou destro e não suportaria ficar sem poder assinar documentos, balanços, cartas e cheques. No afã de fugir, o frio na espinha denunciou que ele se movera, já não havia mais vento lá fora, a cortina se acalmara, mas eu podia ouvir suas pesadas patas caminhando lentamente, explorando com seu ávido olfato a multidão de cheiros que habita um apartamento, ouvindo sorrateiro qualquer respiração nos quartos, sabendo já em sua posição que havia lá três pessoas—a filha mais velha fora jantar com o namorado e voltaria mais tarde. Pensei comigo, puxa, ele bem que podia ir embora antes dela chegar, imagine o susto ao abrir a porta no silêncio avassalador e topar com a bocarra do lobo escancarado, pronta para abater...

Espere, sou homem ou sou um rato? Primeiro, como foi que entrou aqui? Bem, nesta altura, nunca saberemos, mas de fato, o que ele fazia ali no canto da sala, cheirando o bar com seus vinhos licores e vodkas? Alguém pode me explicar isto? Não, claro. Ele estava lá, estendendo o nariz e caminhando lentamente à porta do corredor que dava acesso aos quartos, onde dormia minha filha e onde lia minha esposa! Que faria então? A ideia foi abrir a geladeira falastrona e pegar um vistoso frango que ainda seria assado por Odete, isso se ela viesse amanhã e, Deus o livre, achasse nossos corpos assim meio revirados pelo estranho habitante das trevas. Fui lá, no terceiro pavimento da geladeira (que parou de resmungar por milagre) e apanhei o frango vistoso. Fechei a porta sem ruído algum e mirei o meio da sala, escorregando o corpo da ave desossada e lisa pelo chão de mármore que só fez deslizar e se imobilizar bem próximo de onde o lobo estava, que estacou e farejou o corpo inerte da ave e, surpreso, parou de caminhar para o quarto e decidido, arreganhou os dentes para o petisco. Lá estava o lobo, sua pele cinzenta, suas orelhas pontudas, o olhar vermelho e fixo no corpo ensanguentado do frango que ainda tinha a palidez mortal dos congelados, mas começava a assumir cores mais lúbricas assim que era olhado com mais ou menos fome.

Desgraça! Ouço ruídos no fundo, será que minha esposa virá me chamar, ou beber um copo de suco de melancia, ou um chá detox, algo assim? O maldito lobo está lá, quase sobre as asas do frango indefeso e frio, quando ouve as vibrações da porta do corredor se abrindo, imediatamente mudando seu foco: Era com a surpresa que contava agora, mirando nas coxas dela, com sua camisola mínima e sua sede de magra. Corri à gaveta e puxei uma faca imensa—Odete usava aquilo? —e bati com ela no chão, para chamar a atenção de minha esposa, que viu numa mirada a situação toda e quis gritar! Eu gesticulei e ela recuou apavorada, fechando a porta do corredor e trancando à chave, deixando para mim a responsabilidade de eliminar aquela besta com aquela faca gigantesca mais parecida a uma cimitarra! Eu batia a lâmina no chão e o lobo, ah esse maldito lobo, ele ficou indeciso entre devorar o frango antes e me rasgar de sobremesa, ah esse maldito lobo que apareceu assim na calada da noite bem aqui no oitavo andar, vindo sabe-se lá de que inferno dantesco!

E ele estava lá, o corpo tenso, a cauda baixa, os dentes arreganhados, as orelhas apontadas para os ecos do fundo da casa, o rosnado de quem vai se refestelar! Nunca imaginei isto àquela altura da vida, e olhem que a vida foi boa e lhe sou grato. Pata por pata, ele se movia e algumas vezes seus pelos cinzentos se confundiam na escuridão, só conseguia distinguir certos reflexos...Eles eram seus olhos e eu conseguia ver nas pupilas o fundo de uma alma seca, treinada em caçar, campos de escuridão e silêncio, árvores tortuosas e galhos quebrando, eu conseguia ver naqueles olhos a alma tortuosa e forte de um sobrevivente que não tinha ideia do que fazia ali, sobre o mármore, bem ao lado do vaso de jade e quase inebriado pelos cheiros das bebidas, da carne do frango, do suor de meu medo, dos ruídos da geladeira e da respiração acelerada de minha mulher que murmurava “Meu Deus, meu deus!”.

Oitavo andar, o sofá de pelos felpudos se mescla aos seus pelos, é a própria mimetização que mais assusta num predador astuto, que saboreia o medo da presa que se sabe perdida, mas espera o momento certo de abocanhar o pescoço em firme mordida. “Meu Deus, meu deus”, calma querida, “calma querida, chame a polícia”.

O telefone dela estava no balcão da sala, bem ao lado dos cristais que eram o xodó de sua mãe falecida, bem ao lado da pequena estátua de Buda que mirava a cena entre divertido e nirvânico, bem ao lado das rolhas de nossa coleção, bem ao lado. “Meu Deus, meu deus”, zumbiu o telefone dela, o lobo se distraiu e eu parti como um curdo para cima dele, agora sabendo que era de vida ou morte aquele desfecho, mirei bem no pescoço e, ao acertá-lo, pensei ter ouvido um grito de minha filha mais nova, enquanto o lobo se esvaia num ganido e eu corria à porta do corredor, abrindo de par em par a madeira maciça e talhada. Tudo a tempo de chegar ao quarto e ver minha mulher já de plantão, com uma toalha molhada e de olhos de preocupação.

--Acho que ela está com febre.

Acho que precisava guardar o frango na geladeira. O que os olhos não veem, a bocarra não sente.

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